A necessidade de se falar sobre a saúde mental no trabalho

 

As horas exaustivas de trabalho, que incluíam horas extras diárias, foi uma das razões para que a consultora de estilo e imagem, Elaine Quinderé, tivesse a saúde comprometida. Embora o expediente fosse de 8:30 às 18:30, ela conta que raramente esse horário era respeitado. Além disso, a necessidade de estar sempre disponível nos fins de semana também foi decisivo para prejudicar sua saúde mental no trabalho. “Não tinha como apenas desligar e pronto. É como se fosse uma obrigação estar à disposição. Não era imposto, mas ficava implícito de que era bom que eu estivesse”.

Ela conta que tudo começou com sintomas de virose. Foi como a depressão começou a se manifestar até chegar a um episódio de burnout, caracterizada por ser um distúrbio emocional em quem as pessoas têm alto nível de estresse, sentem uma exaustão extrema e um esgotamento físico. O caso de Elaine não foi resultado de um trabalho específico, mas de muitos anos tendo a mesma rotina em diferentes agências de publicidade. Na época, ela era contratada para a área conteúdo, mas absorvendo outras demandas.

Hoje faz dois anos que Elaine largou a carreira na área de comunicação para trabalhar de forma autônoma como consultora de estilo e imagem. Apesar de a rotina ser tão ou mais intensa quanto antes, ela afirma tem valido bem mais a pena para sua saúde. “Eu consigo ser gentil com a minha saúde mental. Tenho clientes maravilhosas que entendem quando não consigo atendê-las, e consigo ser mais flexível com os meus horários e momentos de lazer”.

A necessidade de se falar sobre a saúde mental no ambiente de trabalho
Elaine Quinderé (Foto: arquivo pessoal)

A consultora não está sozinha nesta situação. De acordo com os dados da Isma-Br, representante local da International Stress Management Association, nove a cada dez brasileiros no mercado de trabalho apresentam sintomas de ansiedade, que variam do grau mais leve ao mais incapacitante. Além disso, 47% sofre de depressão. E segundo a Associação Nacional de Medicina do trabalho (ANAMT), os transtornos mentais e emocionais são a segunda causa de afastamento de serviço, sendo frequente pessoas com esse problema ficarem mais de 100 dias afastadas de suas funções.

Os sintomas de uma saúde mental debilitada por conta do trabalho

A Organização das Nações Unidas (ONU) explica que os principais aspectos que colocam em cheque a saúde mental das pessoas no trabalho são assédio e bullying, excesso de trabalho, jornadas inflexíveis e ameaça de desemprego. E as consequências de um ambiente negativo podem ter consequências drásticas para a vida o trabalhador, levando, inclusive, ao aumento do consumo de álcool e de drogas, além da perda de produtividade. 

A estudante universitária, Juliana dos Santos (nome fictício a pedido da entrevistada), trabalhava no setor financeiro de uma escola quando começou a ficar sobrecarregada. Embora ainda não fosse formada na área, ela diz que assumiu inúmeras responsabilidades fora da sua alçada. “Quando eu corrigia [algum erro] ou fazia o trabalho melhor que os outros da equipe, a função automaticamente era direcionada pra mim”, conta. Com isso, também era comum esticar o expediente em até duas horas.

Em abril de 2018, foi quando o corpo da estudante começou a apresentar os primeiros sintomas. “Comecei a ficar desmotivada, triste e amedrontada. Não dormia mais, comia desesperadamente e chorava por nada. Perdi a vontade de fazer minhas tarefas do dia a dia e comecei a procrastinar em tudo”. Neste momento, Juliana buscou ajuda de um profissional e foi diagnosticada com depressão, precisando se afastar do trabalho. Ela conta que chegou a tomar 18 comprimidos por dia, mas precisou parar com a medicação devido às reações que teve.

Os problemas que continuava tendo em relação ao trabalho somados a outros pessoais, levaram a estudante a três tentativas de suicídio. Diante da situação, Juliana foi demitida por justa causa sem o menor suporte para continuar o tratamento. “Nunca mais consegui trabalhar. Hoje estou morando no interior e fazendo faculdade, mas só durmo com o uso de antidepressivos e tenho sofrido muito as consequências da depressão e da ansiedade na minha vida nos últimos 18 meses”.

Estagiário também sofre

Nem os estagiários estão imunes a essa questão. Mesmo que a Lei de Estágio seja mais restrita, muitas empresas desrespeitam o que determinado, exigindo dos estudantes a mesma responsabilidade de um funcionário contratado. Foi isso o que aconteceu com a jornalista Gizelle Andrade durante o estágio em uma empresa de comunicação em Fortaleza que atuava em rádio, jornal impresso e portal online. 

Segundo Gizelle, os estagiários não eram supervisionados durante o trabalho e respondiam diretamente ao dono da rádio. Assim, apenas eram informado do que deveria ser feito, sem ter poder tirar dúvidas ou ter qualquer orientação. Além disso, a jornalista lembra que era difícil lidar com o chefe. “Ele era muito grosso. Uma vez nós discutimos porque ele disse que eu tinha preguiça de ler as coisas. Ele nunca admitia os próprios erros e sempre jogava pra cima da gente”.

Embora a carga horária fosse oficialmente de seis horas diárias, a então estagiária chegava a trabalhar oito horas com apenas um pequeno aditivo no salário. Os plantões incluíam sábado e domingo num mesmo fim de semana, o que vai contra não só a Lei de Estágio, mas a própria CLT. “Nos sábados [de plantão], a gente trabalhava na rádio pela manhã e, quando chegava em casa, deveríamos passar mais cinco horas alimentando o site, o que dava 11 horas de trabalho. Nos domingos era a mesma coisa”.

A necessidade de se falar sobre a saúde mental no ambiente de trabalho
Gizelle Andrade (Foto: arquivo pessoal)

De acordo com a jornalista, as horas extras eram folgadas posteriormente, mas as folgas nunca podiam ser negociadas. Apenas eram liberadas quando favorecia o chefe. “Teve uma época, quando estava mais perto de eu sair, que eu chegava em casa todo dia chorando”, conta. Apesar de a mãe aconselhar ela a deixar o trabalho, Gizelle queria ter certa independência financeira e tinha esperança de logo conseguir uma posição em outra empresa.

Com o tempo, a situação ficou insustentável para a estagiária. “Eu chegava em casa tão mal comigo mesma, me sentindo tão incompetente, que não tinha vontade de sair, ficava irritada com tudo e não tinha autoestima”. Sobre o impacto que essa experiência teve na sua carreira, Gizelle conta que ficou bastante desestimulada com a Comunicação. 

Ela já havia feito estágio em outras empresas que, de certa forma, também a desanimaram, de modo que este último trabalho foi a cereja do bolo. “Eu estava esgotada mentalmente e acabei desistindo da área. Hoje eu tento buscar outras coisas, não fico mais presa a isso. Não tenho a esperança de ter um emprego para ser feliz. Quero um emprego para me manter”.

As exigências da vida moderna e o impacto na saúde mental 

Ao contrário do que se costuma pensar, Raquel Coelho, professora de Psicologia do Trabalho na Universidade Federal do Ceará (UFC), diz que não é o estilo de vida moderno que tem impactado no adoecimento dos profissionais. Ela explica que, na verdade, são as novas exigências do mercado de trabalho que tem impactado no estilo de vida das pessoas. 

“Ele [profissionais] têm que se adaptar a essas exigências. Há uma pressão maior de produção, e as pessoas acabam levando esse trabalho para casa. Elas estão o tempo inteiro acessíveis através de telefone, e-mail e redes sociais”. A psicóloga também ressalta que não se trata apenas de um aumento na quantidade de trabalho, já que tem sido cada vez mais comum o acúmulo de funções, mas também o aumento de responsabilidades e da pressão. 

Isso impacta não apenas o corpo, mas a mente também. Com isso, as formas como a exaustão se manifesta também têm sido diferentes. Se antes o impacto físico era maior, com sintomas de gastrite e dores de cabeça, agora a incidência de depressão, síndrome de burnout e até suicídio estão mais presentes.

Inclusive, Raquel destaca que os sintomas de uma saúde mental comprometida por conta do ambiente de trabalho podem continuar se manifestando mesmo quando a pessoa se afasta do lugar, como o que tem acontecido com a estudante Juliana. “O que você vivencia no trabalho pode construir um histórico de adoecimento porque deixou uma marca. Por isso trabalhamos com prevenção e não apenas com a mudança de trabalho”. Segundo a psicóloga, um novo emprego pode aliviar os sintomas, mas eles podem persistir pelo resto da vida do profissional.

Outro aspecto que tem prejudicado a saúde mental no ambiente de trabalho é a cultura cada vez mais individualista presente na sociedade. Essa visão faz com que as pessoas sintam-se as únicas responsáveis por solucionar os problemas e desafios, e o mercado tem se apropriado disso para cobrar ainda mais dos funcionários. “A psicologia Social do Trabalho vê isso como algo muito sério. É preciso entender que o contexto adoece, e não é culpa do indivíduo”.

Essa visão mais individualista abre espaço para discursos motivacionais que responsabilizam apenas as pessoas por seus resultados e, embora sejam positivos em outro contexto, neste acabam justificando assédios morais e até mesmo violência na relação empregador-funcionário. “Quando a gente foca a solução do problema apenas no indivíduo, ela será uma estratégia Band-Aid. Ela cobre a ferida, mas não vai curar, pois o problema está na situação”.

O que fazer quando a empresa não protege a saúde mental no trabalho

As empresas são incentivadas a adotarem medidas preventivas como parte de uma estratégia de bem-estar e saúde, que inclua a prevenção, identificação precoce desses eventos, apoio e reabilitação. O problema é que poucas realmente colocam isso em prática, apenas 18%, de acordo com a pesquisa feita pela consultoria Mercer com 267 empresas de médio e grande porte.

Sendo assim, logo quando a pessoa perceber que as condições de trabalhos tem impactado os funcionários de forma negativa, é importante conversar com os gestores. Essa postura é uma maneira de tanto alertar a empresa em relação ao bem-estar de sua equipe quanto tentar melhorar o clima para todos. Mas caso essa medida não gere resultados concretos e o profissional tenha como comprovar que sua saúde foi prejudicada devido às condições de trabalho, é possível utilizar os meios judiciais.

A advogada Ivina Almeida explica que é possível entrar com uma ação no Ministério do Trabalho sem a necessidade de um advogado. Após isso, a justiça irá entrar em contato com os empregadores para tentar um acordo entre as duas partes. Caso não haja consenso, o juiz irá avaliar o caso e decidir se o funcionário merece ou não o dano. 

A ideia de recorrer à Justiça pode até desanimar muitos trabalhadores devido aos gastos com os processos, mas a advogada explica que, para isso, existe a Justiça Gratuita. Esse serviço é uma forma de democratizar o atendimento jurídico, permitindo que pessoas em situação financeira carente também tenha acesso à Justiça.

Fique atento à sua saúde!

Garantir um trabalho para o sustento próprio ou da família é essencial, mas tão importante quanto é garantir que o funcionário trabalhe em condições adequadas para sua saúde. Afinal uma saúde comprometida não consegue dar o suporte necessário para uma vida com resultados, de modo que as consequências podem se arrastar por toda a vida. Por isso, cuide de você e proteja sua saúde mental no ambiente de trabalho.

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